segunda-feira, 6 de março de 2017

Um espectro ronda a modernidade: a maioria



A ficção de um dos episódios da série Black Mirror mostra um mundo onde todos são avaliados e premiados com nota a partir de uma continua votação via rede social. Por essa avaliação, cujos critérios são os mais frívolos possíveis, uma vez que são o da moda e decido pela maioria, redistribui as oportunidades gerais da vida de uma pessoa. Um sistema como este, institucionalizado, tem sido pensado realmente pelo governo chinês. A Internet seria de livre acesso para todos, mas o governo recolheria dados pessoais de modo a premiar as pessoas, infalivelmente, por conta de suas postagens, sempre avaliadas pela votação da maioria, além de alguns comportamentos incentivados pelo próprio sistema online. Um deles seria: perde ponto que não compartilhar a verdade pela Internet. O próprio facebook tem um sistema parecido, e pretende incrementá-lo com essa premiação pela verdade. Tinha que ser, mais uma vez, a verdade!


É claro que um mundo assim é assustador. É atualíssimo, uma vez que podemos notar os linchamentos públicos na Internet – o que é bem explorado em toda a Black Mirror – associados à capacidade de governos decidirem não mais somente por revoltas dentro e fora de sua jurisdição, mas eleições de outros países. O episódio da Rússia como partícipe das eleições americanas, aproveitando-se de um tipo de formação de maioria, é alguma coisa fantástica, mas bem real. Acabou de acontecere! Mas, em termos de teoria, tudo isso não é novo. Tocqueville produziu uma teoria sobre o perigo vindo da opinião da maioria em um mundo democratizado, ou seja, um mundo equalizado.  Além disso, alguns pensadores leram Rousseau como o filósofo que inspirou a idolatria da opinião da maioria e, portanto, um dos grandes fomentadores desse perigo.
A ideia básica de Tocqueville, absorvida pelo século XX e usada em forma de teoria descritiva da modernidade, principalmente em tempos mais recentes, nada é senão uma fecunda crítica à democracia liberal. Fecunda e completamente legítima. Ela está em seu livro clássico, a Democracia na América, produzido entre 1831 e 1835. O livro é fruto da viagem de Tocqueville aos Estados Unidos, com o objetivo inicial de investigar o sistema prisional americano.
A teoria contida no livro diz respeito às vicissitudes da igualdade democrática e seu encaminhamento para o individualismo. Resumindo ao máximo: os americanos não possuem uma filosofia em especulação, mas nem precisam de uma, pois na prática fazem o que a filosofia, em especial a moderna, disse que era o correto. Ou seja, são cartesianos. Querem julgar tudo pela própria razão, de modo individual, e assim fazem. Isso por uma razão simples: não sentem as hierarquias que os europeus sentem, e então não tem que ouvir nenhuma voz mais sábia que as suas próprias para enfrentar seus problemas cotidianos. Cada um, na sua individualidade, se acha suficiente. Todavia, exatamente por não verem ninguém como sabendo mais, tendem a acreditar que a opinião pública da maioria, exatamente por ser o que expressa todos os que sabem iguais a cada um, é alguma coisa inequívoca. Assim, se cada indivíduo age com sujeito cartesiano, o coletivo deve agir também como um super sujeito cartesiano. Desse modo, a igualdade e a liberdade individual servem para o fomento do seu contrário, uma espécie de tirania da maioria, ou melhor, uma tirania da opinião da maioria.
Uma crítica semelhante, levada a cabo, entre outros, pelo filósofo alemão da atualidade Peter Sloterdijk, é dirigida a Rousseau. Sloterdijk desenvolve isso em vários escritos, principalmente num belo e interessante opúsculo chamado Estresse e liberdade (2011). Neste, ele mostra que Rousseau se recolheu na canoa no Lago Biel para ter a experiência da completa solidão, do isolamento, para deixar-se ao sabor não de pensamentos, mas de devaneios. Assim, Rousseau criou uma situação cartesiana às avessas: não penso, logo existo. Percebeu sua existência pelo devaneio, pela vivência sem conteúdo conceitual ou sentimental, pelo completo não pensar ao ficar entregue ao vazio mental de uma tarde no largo Biel. Rousseau teve a experiência da individualidade que o levou, depois, a pensar no conceito de ‘vontade geral’, ou seja, o que se tornaria uma diretriz comum para uma povo individualizado mas sob o beneplácito da vida em um estado democrático, onde ninguém seria mais que o outro. Rawls chegou a pensar essa ‘vontade geral” como uma espécie de campo transcendental, ou seja, uma vontade que se manifestaria como um ideal racional para união para indivíduos livres e iguais, que sem isso ficariam isolados, mas que justamente por isso, seriam capazes de se preencherem na sua individualidade. Assim, cada indivíduo sairia da condição de livre vivida pelo próprio Rousseau no lago Biel, para exercer uma vontade livre, mas não díspar, nas atividades necessárias da vida pública. Não foram poucos que viram no Terror francês e, depois, na Rússia de Lênin e Stalin, figuras se dizerem, com autorização do povo, de cumpridores dessa ‘vontade geral’.
A opinião da maioria em democracia vista por Tocqueville e a ‘vontade geral’ no estado democrático de Rousseau, visto por vários de seus leitores, em especial por Sloterdijk, são bem o que conhecemos como o que temos para não acharmos a democracia liberal igualitária um paraíso. Só um completo tolo nos proibiria de criticá-la! Todavia, a semelhança entre a análise de tocquevilianos e a de Sloterdijk, quanto à modernidade, se encerra neste ponto. Pois, para tocquevilianos o que enxergam diz respeito a uma narrativa que descreve realisticamente a democracia liberal. Todas as potencialidades e perigos estão ali. Mas, para Sloterdijk, o que Rousseau fala é apenas um dos componentes ideológicos da narrativa moderna sobre ela mesma. Para Sloterdijk, o liberalismo fala de indivíduos individualizados ao modo liberal, e não ao modo de uma compreensão mais ampla, antropológica, capaz de invocar saberes pré-liberais ou não liberais.
Sloterdijk vê o homem como reflexivo uma vez que é desde sempre uma bi-unidade, uma subjetividade que é uma díade, e que está apto a se manter em conversação por conhecer o que é ficar sozinho, mas jamais o que é a solidão. A maneira que Sloterdijk vê o homem não é a maneira individualista e substancialista que une Aristóteles a Descartes, e que se estende a Rousseau,
mas é a de uma “ontologia do dois”. Não há homem se não há desde sempre aquilo que Hannah Arendt vê ao falar de Sócrates: o dois em um. Não somos reflexivos por um dote de um indivíduo que pensa de modo inato, nem somos assim por conta do advento miraculoso da linguagem capaz de gerar a intersubjetividade, mas por sermos, desde o útero, os que são formados em parceria com o elemento placentário, com a mãe, depois com as vozes, com o pai etc. Somos sempre os que refazem o ambiente imunizado inicial, vivido em situação sinestésica. Somos os que vão para fora na busca sempre de refazer o dentro.
O indivíduo de Sloterdijk é, então, diferente do indivíduo do individualismo descrito por Tocqueville, e completamente diferente do indivíduo visto pela análise de Rousseau a respeito de si próprio. Ou seja, o indivíduo de Sloterdijk não é o indivíduo participante do clube liberal, aquele clube de sujeitos isolados que, por contrato, ganham uma carteirinha para participarem das benesses do clube, ou seja, a intersubjetividade. Sloterdijk não diz que a América de Tocquevile não existe ou que a ‘vontade geral’ de Rousseau não é uma proposta factível. O que ele diz é que essas narrativas deveriam ser tomadas com o que são, narrativas a mais, e não um retrato fidelíssimo e infalível do homem. Uma narrativa como a dele próprio, então, explicaria as possibilidades da maioria não ser inexoravelmente o destino do mundo – isso não estaria inscrito no próprio projeto humano.
Parece-me que Sloterdijk põe mais vida na situação moderna do que esses outros autores que trabalham na base da crítica de Rousseau e na adesão aos alertas de Tocquevile. A exposição de Sloterdijk abre portas que fazem com que não acreditemos que a opinião da maioria tenha mais poder do que o imenso poder que já lhe damos, inclusive o poder de nos apavorar. Há uma cunha de esperança na narrativa de Sloterdijk que o faz não-realista. Ora, sabemos bem que os realistas tendem, não raro, a apenas compactuar com o banditismo à medida que pronunciam um fatal “o mundo é assim mesmo”.
Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo
http://ghiraldelli.pro.br

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