terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Os oito demônios ricos de hoje

A riqueza nunca foi um pecado. Ela sempre foi um contraponto. Os filósofos gregos não se indispuseram contra ela, apenas diziam que obtê-la não poderia ser um único objetivo na vida (Sócrates) ou uma fonte de preocupação (Epicuro). Jesus nunca falou diretamente contra os ricos, apenas mostrou que a riqueza poderia se tornar alguma coisa maior que o homem, maior que seus desejos explícitos, e então virar um buraco na agulha difícil de ultrapassar. As coisas ainda seguiram a contento para os ricos quando o Renascimento deu seus passos.
Um conto popular do Renascimento foi o Fortunatus. Mais ou menos no início de 1500 esse conto fez o maior sucesso. O enredo era em torno do garoto que tinha ganho uma bolsa, de uma fada da floresta, com moedas que eram magicamente repostas a cada gasto total, e que por conta dessa fortuna, ou seja, dessa sorte, podia correr o mundo de aventura em aventura. A palavra fortuna com a conotação de sorte e prosperidade carregou-se da semântica atual, ou seja, tornou-se sinônima de “montante de dinheiro”. Só havia positividade nisso. Além do mais, o mecenato era a prática dos ricos, até mesmo dos mesquinhos, e com isso o mundo ganhou aspectos melhores. A Igreja deveria cuidar dos pobres, os ricos optaram por cuidar das artes e até mesmo da Igreja, e alguns reis, que haviam se reabilitado financeiramente, passaram a financiar as aventuras das Grandes Navegações. Mas, depois de trezentos anos nisso, as coisas mudaram muito.
Quando os habitantes dos burgos começaram a se dividir entre os burgueses e os que chegavam depois, só para trabalhar para estes, as coisas começaram a mudar de figura. O contraste entre o pobre e o rico, agora num espaço de convivência mais ou menos próximo e regido por leis cada vez mais iguais para ambos, ampliou-se na proporção exata da extensão das condições de igualdade. Foi assim que as coisas se abriram para a revolução semântica que Marx consagrou: os burgueses viraram “os ricos”. O contraste deu a má fama. Marx selou tal má fama à medida que fez uma segunda revolução semântica ao introduzir a palavra exploração não mais em relação às coisas naturais, mas em relação ao trabalho humano. O século XIX terminou desfraldando a bandeira de Tolstoi: “Os ricos farão de tudo pelos pobres, menos descer de suas costas”.
Nos dias de hoje a palavra burguesia voltou naturalmente a se colocar apenas como termo sociológico. Aliás, nesse caso, com um adendo instrutivo: vale dizer “burguesia” quando nos referimos ao século XIX. Quando o escritor fala em burguesia e proletariado para o século XX, já é obrigado a aspar, caso contrário fica como sendo um escritor ainda marxista ou, se quiserem, marxista vulgar. Mas a conotação de rico como negativa perdura. E isso não só por conta da vitória semântica de Marx e dos socialistas em geral, mas agora sempre no contraste entre os ricos e os muito pobres.
Também nesse caso é a sociedade de mercado e democracia que devem ser responsabilizados por tal pensamento. Pois é com a sociedade de mercado que aparece a ideia, explicada pelos economistas de então, de fazer do trabalho abstrato, em termos de horas, o elemento de mensuração da mercadoria. Assim, a balança é o elemento que adentra o cérebro humano. Tudo é visto sob a regra do equivalente,ou seja, de algo que pode e deve se comportar como o mercado pede. Generaliza-se a ideia de que há de se pesar as coisas, criar equivalentes. A ideia de justiça como reposição é absorvida pela ideia de equivalência de tal forma que se alguma coisa é “muito” em relação a algo que é “pouco”, o sentimento de injustiça se acentua e se agrava.
É nesse mundo que os muito ricos, mesmo que estejam empregando seu dinheiro em favor de muitos outros e da sociedade como um todo, aparecem como vilões. Uns até dizem que não são os ricos os vilões, mas o tal “sistema”. Ora, mas dizer “a culpa é do capitalismo” é nada dizer, é apenas repetir jargões da Idade Média, como aqueles que diziam “o mal vem demônio”. Assim, sobra olhar os ricos. Mas, infelizmente, muitos observadores se perdem nisso, pois não analisam os detalhes do que se faz, e sim o simples fato dos ricos serem ricos, ou seja, o de estarem fazendo a balança do dinheiro pesar só para um lado. A falta de equivalência em peso, por si só, forma uma imagem que é associada à injustiça. É essa visão que faz as pessoas torcerem no nariz para a notícia “oito homens detêm a mesma riqueza que a metade mais pobre do mundo”. A semântica aí já aparece com a conotação não mais do Renascimento, mas dos tempos modernos, e o leitor não se pergunta sobre os projetos dos mais ricos para o mundo, ele já os toma como sendo pessoas que não possuem nenhum projeto a não ser o de ganância pessoal. Zuckerberg ou Bill Gates seriam meros sovinas. Desaparece o julgamento intelectual e aparece o puro preconceito.
Aliás, desaparece também a própria investigação da frase da notícia. Pois a frase sobre os “oito ricos” mostra que há muitas pessoas, não existentes no mundo pré-moderno, que não são “os mais pobres” – todos sabemos que criamos uma classe média enorme no Ocidente, que se desfez do trabalho de esforço físico, e que vive sob o conforto da eletricidade e outras forças motrizes que fazem a jornada de trabalho diminuir e a folga aparecer como uma constante. Aliás, todos sabemos que isso também é uma realidade senão dos mais pobres, ao menos dos chamados pobres.
É incrível que tenhamos caído nessa armadilha semântica criada por nós, e isso em tão pouco tempo. É incrível que, em nome de desfazer ideologia, tenhamos criado um ideário ainda mais ideológico. Acabamos colocando um Bill Gates no saco aberto por Trump. Assim, o mecenato é engolido pela farra da arrogância e incultura, um erro crasso. Esquecemos completamente do grande patrocinador Andrew Carnegie, que dizia “quem morre ricos envergonha a sua vida”, uma frase claramente observada por Zuckerberg e outros grandes milionários. Que se repare como que a atividade de George Soros é amaldiçoada pela direita política.
Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo.
http://ghiraldelli.pro.br/

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