terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Empatia: Sócrates e a ideia do “meu santo bate com o seu”

“Definitivamente: meu santo não bate com o seu”. Foi assim que uma colega encerrou seu trabalho conjunto com o seu chefe. Pediu demissão e foi embora. Contando isso na mesa de bar, ela ouviu de outro a objeção já esperada: “nossa, mas você é extremada, você podia encontrar alguns pontos comuns com o seu chefe e seguir em frente, precisava pedir demissão?”. Ela retorquiu: “meu amigo, quando o santo não bate, não bate e aí não há nem como imaginar um ponto em comum, pois não vai aparecer jamais”.
Conheço a expressão a respeito do “santo”. Todos nós conhecemos “o meu santo não bate”. Alguns procuram suas raízes nas práticas das religiões africanas. Sendo ou não de origem africana, não negamos que quer dizer algo como “o meu gênio é incompatível com”. Ora, entendemos bem isso, pois temos a velha expressão que selava divórcios juridicamente: “separação por incompatibilidade de gênios”. Dito isso, não era necessário explicar mais nada. Não há empatia e, com tal frase, nenhuma teoria justificatória seria cobrada.
Todavia, gênio e santo possuem diferenças. Santo sempre carrega uma faceta mais objetiva que subjetiva. Diferentemente, gênio comporta ambas as facetas igualmente. Gênio é alguma coisa do âmbito psicológico, subjetivo, algo como um tipo de humor característico de determinada pessoa, ou algo relativo a um dom pessoal. Sendo algo psicológico, pode ser visto sem qualquer apelo místico, e sua faceta objetiva nada seria senão aquilo que bem conhecemos a respeito de determinadas reações nossas, que surgem de uma maneira que nos parece incontrolável.  Por exemplo, quem tem um “bom gênio” tem um humor afável e quem tem um “mau gênio” está dominado pelo mau humor. Esses humores são de difícil controle por nós mesmos, eles agem como se não fossem subjetivos, mas como forças objetivas de tal ordem que poderíamos jurar que vieram do exterior, localizando-se em nós como um outro ego.
Há pessoas que não dão nenhum crédito ao que é místico e, no entanto, preferem usar a palavra gênio em um sentido em que a parte objetiva é deixada como sendo como tendo força a partir do exterior. Essas pessoas assim fazem de modo a poder enfatizar o lado rebelde do que qualificamos como nossa geniosidade, e bem menos quando falamos de genialidade. Mas no uso da expressão em suas raízes latinas, no passado, tanto o humor incontrolável quanto a alta capacidade para determinadas práticas, ou seja, geniosidade e genialidade, ambas podiam realmente ter suas fontes energéticas ou intencionais a partir do exterior. Humor e inteligência poderiam advir da inspiração provocada por entidades protetoras.
Assim, “Fulana é geniosa” e “Ele é um gênio” seriam expressões que, em graus diversos, sempre poderiam trazer a objetividade própria como que dependendo não de uma objetividade da vida psicológica, mas de algo que até poderíamos, mesmo não sendo místicos, deixar no campo linguístico como o que inspira o sujeito a partir do exterior.
O filósofo Giorgio Agamben lembra que “genius” é o nome do deus que os latinos tinham como um guardião de cada um, recebido no dia do nascimento, e de certo modo responsável pela energia sexual geradora daquele que veio à luz. Agamben insiste que “genius” tem a ver com gerar, e aponta para a cama denominada pelos romanos, em latim, como genialis lectus. Por ter a ver com a geração de cada indivíduo, seria também uma expressão de sua existência inteira, sua divinização como pessoa, algo a ser cultivado e de certo modo o que poderia ser tomado como impessoal em cada um. Cada homem é sua consciência e seu eu, mas é também seu gênio, sua espiritualidade enquanto algo superior e como o que lhe dá impulsos nefastos.[1]
Essa ideia de que cada um tem seu gênio guardião não é propriamente uma invenção dos latinos. Agamben não toca no assunto, mas sabemos que essa ideia está entre os gregos e Platão a menciona. Aliás, Platão conviveu com aquele que recebeu alguma coisa parecida: Sócrates. Nada há de mais famoso nesse sentido que o daimonion de Sócrates.
A peculiar tarefa do daimonion socrático, ou seja, a voz divina que lhe fala em alguns momentos, é a de agir negativamente. Quando se manifesta, é sempre para que o que está em curso seja estancado, paralisado, não realizado. Sócrates a leva a sério. No Teages, Sócrates confia ao daimonion a capacidade de ser negativo quanto a adotar ou não um discípulo, e nesse sentido manifestando clara capacidade premonitória. Nesse sentido, talvez este seja o texto do corpo platônico[2], referente a Sócrates, em que a atividade do daimonion pode ser vista como tendo também a característica de gênio, no sentido de geniosidade e, de certo modo, genialidade.
No Teages Sócrates[3] tem uma conversa com o jovem Teages e seu pai Demódoco. Esse pai procura Sócrates para que este aceite Teages como alguém que poderia ser a ele associado, como um discípulo. O garoto gostaria de seguir a carreira de estadista. Na época, era comum para os que tinham tal ambição, procurar educação ou pagando aos sofistas ou ingressando em uma confraria filosófica. Sócrates questiona o rapaz de todas as maneiras. Assim fazendo, leva o garoto para o trabalho conjunto nos termos mais ou menos característicos do elenkhós, o método da refutação, ou seja, o procedimento de diálogo investigativo próprio de Sócrates. Sócrates que saber se Teages ao menos tem noção de que tipo de estadista que ser, se um estadista valoroso ou se um simples tirano. A conversa evolui depois para as razões pelas quais alguns dos discípulos de Sócrates aprendem a mudam de comportamento, enquanto que outros mudam pouco, e só no tempo em que estão com Sócrates. Eis que Sócrates, então, como advertência a Teages, diz que no fundo quem decide pelo progresso de um discípulo é o daimonion.
É claro que se pode entender aí a função do daimonion como pontual, como que dizendo um “sim”, uma vez que acaba não se manifestando. Todavia, Teages é aceito, como ele próprio propõe, em caráter experimental. O daimonion poderia um dia se manifestar. Ou seja, o daimonion quase que atuaria aí como que um gênio que é necessário, com o tempo, se mostrar afinado ou não com o discípulo.
Caso fosse possível falar em gênios e não em apenas um gênio, o daimonion de Sócrates, então a resposta do filósofo poderia ser lida tranquilamente no sentido da ideia de “compatibilidade de gênios” ou “incompatibilidade de gênios”. Em outras palavras, Sócrates poderia estar dizendo: vou aceitá-lo como discípulo e veremos se nossos santos batem, ou ainda, se meu santo bater com o seu, sua educação terá êxito.
Em outros textos platônicos Sócrates depende claramente da força erótica dele próprio e, enfim, da filosofia, para que o discípulo venha a realizar o que é a principal tarefa da filosofia socrática, o “conhece-te a ti mesmo”. Neste livro, o Teages, no entanto, ainda que Sócrates lembre que o que ele conhece mesmo é a arte erótica (a arte do namoro que é também pedagógico-filosófico, a arte com o elenkhós), a questão do êxito na tarefa filosófica do discípulo é alguma coisa da ordem da empatia, tomada em um sentido muito específico. Seria Eros, ainda, quem deveria estar na base da empatia? Ou “meu santo bate com o teu” é alguma coisa da empatia em um sentido completamente deserotizado?
Talvez não devêssemos, a rigor, colocar essa questão. Afinal, Sócrates nunca reduz a atividade erótica à atividade sexual, mas ao contrário, Sócrates vive em uma cultura erotizada, distante da cultura exclusivamente sexualizada. “Meu santo não bate com o seu” ou “meu santo bate com o seu” não precisariam, em Sócrates, funcionar como algo despregado do campo erótico. A meu ver, isso seria latinizar demais Sócrates.
Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo.
http://ghiraldelli.pro.br/

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